Patrimônio intocável
Mesmo presos, inconfidentes protegeram suas fortunas de Portugal
André Figueiredo Rodrigues
8/4/2011
- As aulas de História ensinam até hoje que os envolvidos na Inconfidência Mineira (1789) foram presos e tiveram todos os seus bens apreendidos. A imagem que ficou, no rastro da repressão violenta por parte da Coroa portuguesa, é a de traidores degredados, famílias dissolvidas, fortunas desbaratadas. Muitos livros chegam a afirmar que a fortuna dos vinte e quatro inconfidentes proporcionou um lucro de 643 quilos de ouro, valor comparável ao que Portugal arrecadava em impostos sobre o metal precioso naquele ano. Mas a história contada nas publicações didáticas não corresponde exatamente à realidade.Nessa época, o Brasil era regido por um conjunto de leis sancionadas por Felipe I em 1595 que só começaram a valer a partir de 1603 – quando foram impressas no Livro V das Ordenações Filipinas. De acordo com elas, todos os bens pertencentes a uma pessoa que fosse presa por se rebelar contra a Coroa seriam confiscados. Eles teriam que ser cuidadosamente descritos e avaliados.As apreensões não só revelavam as posses de um determinado indivíduo – fazendas, animais, equipamentos, residências, utensílios domésticos, móveis, roupas, escravos e livros –, como também as dívidas a pagar e a receber. Por isso as famílias dos envolvidos na conspiração, que tinham que declarar seus bens à Coroa, enganavam as autoridades o quanto podiam para não perder tudo.Foi por meio desses confiscos que se ficou sabendo que o mártir da Inconfidência, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, não era um homem de poucas posses, como se diz. Na verdade, ele era muito abastado, pois possuía sítios, várias cabeças de gado, sesmarias e escravos. Em 1781, o alferes comandou a construção do Caminho do Meneses, que atravessava a Serra da Mantiqueira. Ao perceber que os rios e córregos da região estavam cheios de riquezas minerais, pediu autorização para explorar oitenta jazidas, mas só recebeu do comandante do distrito o direito de explorar quarenta e três delas, o que fez até ser preso como inconfidente.Quase um mês depois do sequestro dos bens de Tiradentes, a devassa descobriu que ele era dono de um sítio de aproximadamente cinquenta quilômetros quadrados na Rocinha Negra, no porto do Meneses, no Rio Paraibuna. O mártir da Inconfidência também tinha fazendas na freguesia de Nossa Senhora da Glória de Simão Pereira, no Caminho Novo, que ligava o Rio de Janeiro a Minas Gerais. Nessas propriedades, ele mantinha atividades de mineração e práticas agrícolas, além de criar gado. Mas, no início do processo de confisco, todo esse patrimônio passou para as mãos de Jerônimo da Silva Ferreira, um de seus sócios.As terras que haviam sido do alferes foram transferidas, no século XIX, para um dos maiores cafeicultores da Zona da Mata mineira, o capitão José de Cerqueira Leite. Já o gado sequestrado do inconfidente, de acordo com um recenseamento feito na Intendência de Sabará em abril de 1811, gerou lucros para Antônio Álvares de Araújo, que passou a administrar este bem – talvez por tê-lo comprado ou por ter sido designado fiel depositário –, do qual a Fazenda Real nunca recebeu um tostão sequer. Pelo fato de os bens de Tiradentes terem passado para as mãos de terceiros ao longo dos anos, a ideia de que ele era um homem pobre se propagou pela História.Mas Joaquim José não foi o único inconfidente que teve seus bens ocultados da Coroa. O coronel e fazendeiro José de Resende Costa (1730-1798), que residia no arraial da Laje – atual município de Resende Costa –, foi preso em maio de 1791, mas não sem antes criar uma estratégia para que parte de sua fortuna ficasse com a família. Sabendo que poderia ser encarcerado a qualquer momento, ele resolveu, poucos dias antes de ser preso, casar sua única filha com um sócio que tinha no negócio do ouro. Pelo matrimônio, o capitão-mor Gervásio Pereira de Alvim receberia oito escravos, oitenta cabeças de gado, trinta éguas, a Fazenda do Rio dos Bois, localizada no Curato do Passatempo – atual Entre Rios de Minas –, e mais oitocentos mil réis em dinheiro, quantia com a qual se poderia comprar oito escravos.Para poder botar as mãos nos valores e bens do acordo de casamento, Alvim resolveu, como genro – e após maio de 1791, como guardião dos bens sequestrados de seu sogro –, quitar todas as dívidas da família, inclusive as que ele deveria receber.Na prestação de contas que Alvim apresentou à Fazenda Real, em 1799, consta que todos os bens de Resende Costa foram arrematados em leilões. De acordo com o documento, a casa do inconfidente sofreu duas cobranças judiciais: uma impetrada pelo cunhado Severino Ribeiro e outra pelo próprio genro. Para quitar essas pendências, Gervásio, que era o maior credor do inconfidente, separou e avaliou 465 bens do sequestro. Entre eles constam utensílios domésticos, ferramentas, vinte e seis escravos, duas fazendas, 155 áreas de mineração, 175 animais, peças de vestuário e móveis. Tudo avaliado em 3.352.075 réis e arrematado por 3.344.625 réis, 0,22% abaixo do valor originalmente estipulado pelo avaliador. Como o próprio capitão-mor foi o arrematante, a fortuna do coronel Resende Costa permaneceu nas mãos da família.Depois de resolvidas as pendências pessoais, apareceram outras duas cobranças que incidiram sobre o patrimônio do inconfidente. Para saldá-las, Gervásio separou noventa e dois bens que não entraram na primeira avaliação, como livros, escravos, roupas, móveis e terras. Da dívida de 1.116.637 réis, cobrada pelo tenente Pedro Teixeira de Carvalho, o genro pagou 999.722 réis, correspondentes à avaliação e à venda do novo lote. Por conta disso, a casa do coronel fechou suas contas em débito. Ecomo a famílianão possuía mais bens que pudessem ser confiscados, a Coroa portuguesa acabou não obtendo rendimento algum com o patrimônio de Resende Costa, que já estava exilado em Cabo Verde desde 1794. Lá ele foi nomeado contador, distribuidor e inquiridor da Ouvidoria, funções que exerceu até sua morte.Caso semelhante ocorreu com a fortuna do fazendeiro e coronel Francisco Antônio de Oliveira Lopes (1750-1794), que vivia com a esposa, Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, na Fazenda da Ponta do Morro, entre a vila de São José e o arraial de Prados. Quando ele foi preso, em 1789, por causa do envolvimento com os inconfidentes, a Coroa apreendeu sua fazenda, 430 animais de criação e setenta e quatro escravos, assim como os utensílios e rendimentos das extrações de ouro. Naquela ocasião, Hipólita – que vinha de uma família abastada – declarou à Justiça, estrategicamente, bens que em grande parte eram de sua sogra, e não os que pertenciam ao seu patrimônio.Inconformado por ver o patrimônio de sua mãe, Bernardina Caetana, apreendido pela Coroa como se fosse do irmão Francisco Antônio – e sem ter como recebê-lo como herdeiro –, o sargento-mor Manuel Caetano Lopes de Oliveira tomou uma iniciativa: denunciou a artimanha articulada por sua cunhada. Com isso esperava ganhar a confiança do governador para obter uma decisão que lhe fosse favorável em relação à disputa familiar.Hipólita havia conseguido evitar o confisco de setenta e quatro escravos, duas propriedades, bois, vacas e cavalos, além de muitas bugigangas de casa, como jarros, bacias, louças, faqueiros, baús, cadeiras e armários. Mas, em abril de 1795, ela foi chamada pela Justiça para prestar esclarecimentos. Mesmo reconhecendo os atos de sonegação, Hipólita não foi penalizada. A fortuna que havia sido escondida permaneceu nas mãos da família, sem que sofresse nova apreensão. Seu cunhado recebeu a parte que lhe cabia da herança, subtraindo-a dos bens que foram confiscados. Quanto à Fazenda da Ponta do Morro – como estava claro em um documento encaminhado ao Secretário do Ultramar em Lisboa, D. Rodrigo de Souza Coutinho –, tratava-se de uma herança paterna, e por isso não poderia ficar nas mãos da Justiça. No fim das contas, a estratégia de dona Hipólitaacabou dando certo.Computando-se o total geral de apreensões, a Coroa pouco lucrou com os confiscos de bens, e as famílias dos revoltosos perderam uma fração ínfima de suas posses, ao contrário do que amplamente se divulga. Além disso, outras pessoas acabaram lucrando com o patrimônio que pertencia aos inconfidentes. Os acontecimentos do final do século XVIII mostram que desbaratar a Inconfidência Mineira não foi um bom negócio para Portugal, mas, no imaginário popular, nem sempre vale o que está escrito nos documentos oficiais.
ANDRÉ FIGUEIREDO RODRIGUESé professor das Faculdades Guarulhos, do Centro Universitário Anhanguera de São Paulo e autor de A fortuna dos inconfidentes: caminhos e descaminhos de bens de conjurados mineiros (1760-1850) (Globo, 2010).
Saiba Mais - BibliografiaFURTADO, João Pinto. O manto de Penélope: história, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.JARDIM, Márcio. A Inconfidência Mineira: uma síntese factual. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1989.MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira, Brasil – Portugal, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.
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